O motim e a insurreição de direita liderados em 8 de janeiro por seguidores do atual presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, tiveram fortes ecos do ataque de 6 de janeiro ao Capitólio dos EUA pelos apoiadores de Trump. Assim como o ataque de uma multidão de apoiadores de Trump em 6 de janeiro de 2021, em Washington, DC, a insurreição de 8 de janeiro de 2023 na capital Brasília surgiu de semanas de protestos de apoiadores de um presidente em exercício que se recusou a aceitar a derrota eleitoral em um eleição de outono. Ambos os casos revelam quão frágeis se tornaram as democracias representativas liberais na era neoliberal, argumenta Noam Chomsky na entrevista exclusiva para Truthout que se segue, acrescentando que talvez não tenhamos visto o último destes acontecimentos nem nos EUA nem na América Latina.
Chomsky é professor emérito do Departamento de Lingüística e Filosofia do MIT e professor laureado de linguística e Cátedra Agnese Nelms Haury no Programa de Meio Ambiente e Justiça Social da Universidade do Arizona. Um dos estudiosos mais citados do mundo e um intelectual público considerado por milhões de pessoas como um tesouro nacional e internacional, Chomsky publicou mais de 150 livros em linguística, pensamento político e social, economia política, estudos de mídia, política externa dos EUA e mundo. romances. Seus livros mais recentes são Autoridade Ilegítima: Enfrentando os Desafios do Nosso Tempo (a ser publicado; com CJ Polychroniou); Os segredos das palavras (com Andrea Moro; MIT Press, 2022); A Retirada: Iraque, Líbia, Afeganistão e a Fragilidade do Poder dos EUA (com Vijay Prashad; The New Press, 2022); e O Precipício: Neoliberalismo, a Pandemia e a Necessidade Urgente de Mudança Social (com CJ Polychroniou; Haymarket Books, 2021).
CJ Polychroniou: Noam, em 8 de janeiro de 2023, apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro invadiram prédios do governo porque não aceitariam a derrota de seu líder fascista — um evento, aliás, que você temia fortemente que pudesse ocorrer quase a partir do momento em que Luiz Inácio Lula da Silva venceu as eleições presidenciais. A insurreição, claro, levantou muitas questões dentro do Brasil, bem como no exterior, sobre o papel da polícia brasileira, o fracasso dos serviços de inteligência em avisar Lula sobre o que iria acontecer e quem orquestrou os tumultos. Esta foi, sem dúvida, uma tentativa de golpe de Estado, tal como a insurreição de 6 de Janeiro no Capitólio dos EUA, e deveria servir como mais um lembrete de quão frágeis se tornaram as democracias liberais na era neoliberal. Você pode comentar sobre esses assuntos?
Noam Chomsky: Frágil mesmo. A tentativa de golpe de 6 de Janeiro poderia ter tido sucesso se algumas pessoas tivessem tomado decisões diferentes e se Trump tivesse conseguido substituir o comando militar superior, como aparentemente estava a tentar fazer nos seus últimos dias no cargo.
O dia 6 de janeiro não foi planejado e o líder estava tão consumido pela raiva narcisista que não conseguia controlar o que estava acontecendo. O 8 de Janeiro, claramente inspirado no seu antecessor, foi bem planeado e financiado. As primeiras investigações sugerem que pode ter sido financiado por pequenas empresas e talvez por interesses agrícolas preocupados com a violação da sua liberdade para destruir a Amazónia. Foi bem divulgado com antecedência. É impossível que os serviços de segurança não tivessem conhecimento dos planos. Na própria Brasília – território pró-Bolsonaro – eles praticamente cooperaram com os saqueadores. O exército assistiu ao golpe ser bem organizado e abastecido em acampamentos fora das instalações militares próximas.
Com a impressionante unidade que faltava nos EUA, as autoridades e as elites brasileiras condenaram a revolta bolsonarista e apoiaram as ações decisivas do recém-eleito presidente Lula para suprimi-la. Não há nada como o movimento negacionista dos EUA nos altos escalões. A revolta em si foi selvagem e indiscriminada, como foi amplamente retratado na extensa cobertura televisiva. A intenção aparente era criar caos suficiente para que os militares tivessem um pretexto para assumir e restabelecer a ditadura brutal que Bolsonaro tanto admirava.
A oposição internacional à insurreição também foi imediata e enérgica, e mais importante, claro, a de Washington. Segundo o bem informado analista político brasileiro Liszt Vieira, que compartilhou seus pensamentos com Fórum 21 em 16 de janeiro, o presidente Biden, embora não fosse admirador de Lula, “enviou 4 diplomatas para defender o sistema eleitoral brasileiro e mandar uma mensagem aos militares: Nada de golpe!” Seu relatório é confirmado por John Lee Anderson em um conta criteriosa dos acontecimentos que se desenrolam.
Se a tentativa de golpe de 6 de janeiro tivesse sido bem sucedida, ou se a sua cópia tivesse ocorrido durante uma administração republicana, o Brasil poderia ter regressado aos anos sombrios da ditadura militar.
Duvido que tenhamos visto o fim disto nos EUA ou na “nossa pequena região aqui”, como a América Latina foi chamada pelo Secretário da Guerra Henry Stimson ao explicar por que todos os sistemas regionais deveriam ser desmantelados na nova era do pós- guerra hegemonia dos EUA, exceto a nossa.
A fragilidade das democracias ao longo da era neoliberal é bastante evidente, começando pelas mais antigas e mais bem estabelecidas delas, a Inglaterra e os EUA. Também não é surpresa. O neoliberalismo, pretensões e retórica à parte, é basicamente uma guerra de classes. Isto remonta às raízes do neoliberalismo e do seu primo próximo, a austeridade após a Primeira Guerra Mundial, um tema discutido no trabalho recente muito esclarecedor por Clara Mattei.
Como tal, um princípio fundamental é isolar a política económica da influência e pressão públicas, quer colocando-a nas mãos de especialistas profissionais (como nas democracias liberais) quer através da violência (como sob o fascismo). As modalidades não são claramente diferenciadas. O trabalho organizado deve ser eliminado porque interfere com a “economia sólida” que transfere riqueza para o sector muito rico e empresarial. Os acordos de direitos dos investidores mascarados de “comércio livre” deram a sua própria contribuição. Uma série de políticas, legislativas e judiciais, deixaram os sistemas políticos ainda mais nas mãos do capital privado concentrado do que a norma, enquanto os salários estagnaram, os benefícios diminuíram e grande parte da força de trabalho foi levada para a precariedade, vivendo de salário em salário com poucas reservas. .
É claro que o respeito pelas instituições diminui – com razão – e a democracia formal sofre erosão, exactamente como dita a guerra de classes neoliberal.
O Brasil, tal como os EUA, é uma nação profundamente dividida, praticamente à beira de uma guerra civil. Dito isto, acredito que Lula tem uma tarefa muito difícil pela frente em termos de unir a nação e impulsionar uma nova agenda política baseada em valores progressistas. Devemos, portanto, ficar surpreendidos se o seu governo não conseguir levar a cabo reformas radicais, como muitos parecem esperar que um presidente de esquerda faça?
Não vejo qualquer perspectiva de reformas radicais, nem no Brasil nem nos países vizinhos, onde houve recentemente uma nova “onda rosa” de vitórias políticas de esquerda. A liderança eleita não está empenhada numa mudança institucional radical e, se estivesse, enfrentaria a poderosa oposição de concentrações internas de poder económico e de forças culturais conservadoras, muitas vezes moldadas pelas igrejas evangélicas, juntamente com o poder internacional hostil – económico, subversivo, militar – que não abandonou a sua vocação tradicional de manter a ordem e a subordinação na “nossa pequena região aqui”.
O que se pode realisticamente esperar no Brasil é levar adiante os projetos dos primeiros mandatos do presidente Lula, que o Banco Mundial, num estudo sobre o Brasil, chamou de “década de ouro”, com redução acentuada da pobreza e expansão significativa da inclusão numa sociedade dramaticamente desigual . O Brasil de Lula também poderá recuperar a posição internacional que alcançou durante os seus primeiros mandatos, quando o Brasil se tornou um dos países mais respeitados do mundo e uma voz eficaz para o Sul Global, tudo perdido durante a regressão de Bolsonaro.
Alguns analistas experientes estão ainda mais otimistas. Jeffrey Sachs, após intensas discussões com o novo governo, concluiu que as perspectivas de crescimento e desenvolvimento são favoráveis e que o desenvolvimento e o papel internacional do Brasil poderiam “ajudar a reformar a arquitetura global — incluindo finanças e política externa — em benefício do desenvolvimento sustentável”.
De suma importância, não apenas para o Brasil, mas para o mundo inteiro, seria a retomada e ampliação da proteção da Amazônia, que foi um destaque dos primeiros mandatos de Lula, e que foi revertida pelas políticas letais de Bolsonaro de permitir a destruição da mineração e do agronegócio que já eram começando a transformar partes da floresta em savana, um processo irreversível que transformará um dos maiores sumidouros de carbono do mundo num produtor de carbono. Com a dedicada ambientalista Marina Silva agora responsável pelas questões ambientais, há alguma esperança de salvar este precioso recurso da destruição, com terríveis consequências globais.
Há também alguma esperança de resgatar os habitantes indígenas das florestas. Algumas das primeiras ações de Lula ao recuperar a presidência foram visitar comunidades indígenas que haviam sido submetidas ao terror desencadeado pelo ataque de Bolsonaro à Amazônia e aos seus habitantes. As cenas de miséria, de crianças reduzidas a esqueletos virtuais, de doença e destruição, estão além das palavras para descrever, pelo menos as minhas. Talvez estes crimes hediondos cheguem ao fim.
Estas não seriam pequenas conquistas. Eles poderiam ajudar a estabelecer uma base mais sólida para a mudança institucional mais radical que os brasileiros precisam e merecem – e não apenas o Brasil. Já existe uma base. O Brasil é o lar do maior movimento popular de esquerda do mundo, o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), que se apropria de terras não utilizadas para formar comunidades produtivas, muitas vezes com cooperativas prósperas – com certeza, não sem luta acirrada. O MST está estabelecendo vínculos com um importante movimento popular de esquerda urbana, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. A sua figura mais proeminente, Guilherme Boulos, está próximo de Lula, representando tendências que poderão ser capazes de abrir um caminho para além das melhorias incrementais que são desesperadamente necessárias em si mesmas.
A esquerda, não importa onde chegue ao poder, parece ficar aquém das expectativas. Na verdade, muitas vezes, acaba por executar a própria agenda política neoliberal que desafia enquanto está na oposição. Será porque o neoliberalismo é um inimigo formidável ou porque a esquerda de hoje carece de uma estratégia e de uma visão para além do capitalismo?
Há muito que existe uma cultura de esquerda viva na América Latina, com a qual o colosso do norte pode aprender. As barreiras internas e externas, que são formidáveis muito para além da sua encarnação neoliberal, foram suficientes para restringir esperanças e expectativas. A América Latina pareceu muitas vezes prestes a libertar-se destas restrições. Talvez isso aconteça agora. Isso poderia ajudar a impulsionar os desenvolvimentos no sentido da multipolaridade que são hoje evidentes e que poderão, apenas poderão, abrir o caminho para um mundo muito melhor. O poder enraizado, no entanto, não desaparece simplesmente.
Falamos de crises políticas, de crises económicas e de uma crise ecológica e climática, entre outras, mas parece-me que deveríamos falar também de uma crise de humanidade. Com isso quero dizer que podemos estar à beira do alvorecer de uma era anti-iluminista, com o capitalismo e a irracionalidade enlouquecidos e estando na raiz de uma transição ontológica generalizada. Você tem alguma opinião para compartilhar sobre este assunto? Estaremos confrontados com a possibilidade do surgimento de uma era anti-iluminista?
Devemos ter em mente que o Iluminismo não foi propriamente um mar de rosas para a maior parte do mundo. Foi acompanhado pelo desencadeamento daquilo que Adam Smith chamou de “a selvagem injustiça dos Europeus”, um ataque horrível contra a maior parte do mundo. As sociedades mais avançadas, Índia e China, foram devastadas pela selvageria europeia, nos seus últimos estágios a mais terrível rede de narcotráfico do mundo, que devastou a Índia para produzir o ópio que foi enfiado goela abaixo na China por bárbaros liderados pela Inglaterra, com o seu Norte. A ramificação americana não fica muito atrás, e outras potências imperiais juntam-se no que a China chama de século da humilhação. Nas Américas e em África, a destruição criminosa foi muito pior, de formas demasiado conhecidas para serem relatadas.
Havia ideais elevados, com alcance limitado, embora significativo. E é verdade que têm sido alvo de ataques severos.
O facto de o capitalismo desenfreado ser uma sentença de morte para a humanidade já não pode ser escondido com palavras tranquilizadoras. A violência imperial, o nacionalismo religioso e as patologias que o acompanham correm desenfreadamente. O que está a evoluir diante dos nossos olhos levanta de forma cada vez mais nítida a questão que deveria ter atingido a todos nós com uma fúria ofuscante há 77 anos: Podem os humanos colmatar a lacuna entre a sua capacidade tecnológica para destruir e a sua capacidade moral para controlar este impulso?
Não é apenas uma pergunta, mas a questão última, na medida em que se não receber uma resposta positiva, e em breve, ninguém se preocupará por muito tempo com os outros.
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