Exigindo Justiça na Delegacia
“Tudo fica guardado na espinha dorsal da memória que é a vida e a história. A memória mexe com as pessoas até sangrar quando a mantêm ancorada e não a deixam voar livre como o vento” – Leon Gieco, cantor e compositor folk argentino.
“'Onde está Luciano Arruga?'” Sua mãe, Mônica Alegre, luta para responder a essa pergunta, respondendo com desesperança e desespero nos olhos, o olhar de uma mãe que perdeu o filho. “Luciano Arruga é um menino de 16 anos que desapareceu à força em 31 de janeiro de 2009.”
Um ano após seu desaparecimento, autoridades, parentes e vizinhos ainda não têm vestígios do paradeiro de Luciano. Um movimento crescente de familiares exigindo justiça e o fim dos crimes cometidos pelas mãos da polícia contra seus entes queridos juntou-se aos gritos de “Onde está Luciano Arruga?”
Luciano Arruga, jovem da classe trabalhadora do anel viário suburbano desindustrializado de Buenos Aires, desapareceu na democracia. De acordo com relatos de testemunhas e as poucas provas recolhidas na investigação, o seu desaparecimento aponta para o modelo de corrupção policial e de polícia de “gatilho fácil” que transformou a violência contra jovens pobres numa instituição nas periferias marginalizadas da capital do país.
A vida de Luciano
Luciano morava em uma casa de tijolos de cimento de dois cômodos com sua mãe e dois irmãos mais novos no bairro de Lomas del Mirador, no município de La Matanza, na Grande Buenos Aires. Como a maioria dos meninos de sua idade na Grande Buenos Aires, ele gostava de música, tocava violão e trabalhou durante meses vendendo papelão arrecadado para economizar para comprar seu primeiro MP3 player. Ele era o irmão mais velho da família, um fardo pesado para um menino que perdeu o pai aos 8 anos.
“Não tenho esperança de encontrar Luciano se a polícia continuar a operar de forma semelhante, com total cumplicidade do sistema político e judicial”, diz Vanessa Orieta, irmã de Luciano. Os dois irmãos tinham um relacionamento especial; Luciano admirou sua irmã, que é estudante da Universidade de Buenos Aires. Pouco antes de ser visto pela última vez, Luciano decidiu que queria voltar a estudar para terminar o ensino médio e dar de presente o diploma para a irmã.
Antes do seu desaparecimento, Luciano foi vítima de assédio por parte da polícia local. Segundo sua irmã e sua mãe, em diversas ocasiões ele foi oferecido para 'trabalhar para' a polícia, que lhe prometeu que ele poderia comprar tênis de marca e cuidar de sua mãe. Quando ele recusou, as ameaças começaram. Luciano foi detido duas vezes na delegacia local de Lomas del Mirador, em 22 de junho e 21 de setembro de 2009. “Luciano não pôde ir até minha casa porque a polícia iria detê-lo, ameaçando-o de que acabaria em uma vala", disse Orieta.
Mãe de Luciano, Mônica Alegre, diante de uma faixa onde se lê a data do desaparecimento do filho. Foto de Mimi Schiffman
As autoridades admitem que a corrupção policial na força policial da Grande Buenos Aires continua generalizada. Pablo Pimentel, advogado de direitos humanos da Assembleia Permanente dos Direitos Humanos, afirma que o recrutamento de jovens pobres para cometer crimes para a polícia é uma tendência galopante. “O que aconteceu com Luciano Arruga não é um caso isolado. Faz parte de uma cultura da polícia provincial que recruta jovens vulneráveis de bairros pobres para sair e roubar para a polícia. não trabalhe para eles." Ele acrescenta que, como os moradores temem repercussões policiais, evitam denunciar casos de corrupção. A mãe de Luciano diz que o erro que cometeu e pelo qual pagará pelo resto da vida foi não tomar medidas contra o assédio policial que seu filho enfrentou após se recusar a trabalhar para a polícia.
A última vez que a mãe viu o filho foi na noite de 31 de janeiro de 2009. Luciano contou à mãe que ia sair e pediu dinheiro, deu-lhe 25 centavos, tudo o que ela tinha. Ele trocou com ela um sorriso e um beijo. Segundo testemunhas, Luciano foi visto pela última vez em uma esquina a quatro quarteirões da delegacia. “À meia-noite, meu filho desapareceu. Aconteceu à noite, quando não havia ninguém para ver, meu filho estava sozinho, indefeso e se aproveitaram dele”, conta Alegre.
Investigação defeituosa
Horas depois de Luciano não voltar para casa, sua mãe começou a ficar preocupada. Quando a mãe dele foi à delegacia, eles disseram a ela: “'não se preocupe, ele vai aparecer'. E eles riram da minha cara." A procuradora Celia Cejas disse ao diário nacional Pagina/12 que “a hipótese mais forte é que a polícia é responsável”. No entanto, durante os primeiros 45 dias de investigação, nenhuma prova foi coletada porque o ex-procurador suspeitava que Arruga vendia drogas. O promotor anterior foi afastado e Cejas conduziu uma busca por cães de resgate. Na revista canina, foram encontrados vestígios de Luciano em uma viatura estacionada na entrada da delegacia. Os registros policiais também registram que a viatura foi parada em lote municipal onde também foram detectados vestígios de Arruga.
Um preso identificou Arruga por uma foto e testemunhou que viu o jovem na delegacia após ser torturado. No entanto, o promotor Cejas desvalorizou o depoimento. Os oito policiais de plantão na noite do desaparecimento de Arruga foram retirados da delegacia para serem transferidos para outra pelo ministro provincial da Segurança, Carlos Stornelli. Os advogados da família de Arruga solicitaram que os policiais de plantão fossem convidados a depor como testemunhas no caso, para avaliar se seus depoimentos são contraditórios.
O estigma social dos desaparecimentos forçados
“Até que seu corpo apareça, não podemos dizer que a polícia matou Luciano Arruga. Só podemos suspeitar que a polícia o matou”, disse a ministra provincial dos Direitos Humanos, Sara Derotier de Cobacho. A Ministra dos Direitos Humanos é especialista no estigma dos desaparecimentos. Seus dois filhos e nora desapareceram durante a ditadura, sequestrados durante a noite por grupos de comando, levados para centros de detenção clandestinos, torturados e posteriormente seus corpos nunca mais foram encontrados. Ela faz parte do grupo de direitos humanos Mães da Plaza de Mayo que ainda depois de 30 anos continua em busca do paradeiro de seus filhos e de justiça para os responsáveis pelos desaparecimentos.
“Onde está Luciano Arruga?” Foto de Mimi Schiffman
O ato de desaparecimentos forçados deixou feridas profundas na Argentina. Mais de 30,000 pessoas desapareceram durante a sangrenta ditadura militar do país, de 1976 a 1983. A Federação Latino-Americana de Associações de Familiares de Detidos-Desaparecidos (FEDEFAM) foi formada em 1981. A FEDEFAM define os desaparecimentos forçados como um método para incutir terror e uma violação. de todos os direitos humanos básicos. “O objectivo do desaparecimento forçado não é simplesmente a captura da vítima e os subsequentes maus-tratos, o que muitas vezes ocorre na ausência de garantias legais. Devido ao anonimato dos captores e à subsequente impunidade, também cria um estado de incerteza e terror tanto no família da vítima e na sociedade como um todo”.
Mesmo após o regresso à democracia em 1983, o legado dos desaparecimentos forçados continuou na Argentina. Miguel Bru, um estudante de La Plata, foi morto numa delegacia de polícia em 1993, mas seu corpo nunca foi encontrado. Julio Lopez desapareceu há três anos, em 18 de setembro de 2006, em sua cidade natal, La Plata, Argentina. O desaparecimento da testemunha Julio Lopez em 2006 reacendeu memórias dolorosas de repressão selectiva com impunidade e receios sobre a possibilidade de repercussões violentas contra sobreviventes e testemunhas que participaram em julgamentos de direitos humanos.
No caso de Luciano Arruga, os ativistas que participam da campanha para trazer à vista do público o alarmante aumento da violência policial e da corrupção receberam ameaças. Juan Tevez, um activista de 22 anos de um movimento popular de trabalhadores desempregados, Frente Dario Santillan, recebeu um telefonema no dia 31 de Janeiro, depois de participar num evento de aniversário do caso de Arruga. A pessoa que ligou perguntou a Tevez ‘se este era o número dele’ e disse que sabia que esta data era especial para ele. A ligação terminou com o interlocutor tocando uma marcha fúnebre. “O caso de Luciano Arruga representa a estigmatização dos jovens pobres. A mídia diz ao público que as crianças pobres são criminosas, o que permite que a polícia cometa abusos”, diz Tevez em entrevista ao Toward Freedom. E acrescenta: “Nossa campanha sobre o paradeiro de Luciano Arruga questiona as instituições repressivas do Estado, como a polícia. Aqueles de nós que recebem ameaças são jovens que optaram por não ficar calados e não aceitar a violência policial; estão chateados porque querem nos silenciar."
Movimento contra a violência policial
No aniversário do desaparecimento de Arruga, centenas de pessoas reuniram-se em La Matanza para um festival contra a repressão policial. Mães, pais, irmãs, irmãos e companheiros carregam fotos de seus entes queridos vítimas da violência policial. Desde 1983, 2,826 pessoas morreram nas mãos de policiais de gatilho fácil ou dentro de prisões ou institutos juvenis. Metade dessas mortes foram de jovens pobres do sexo masculino com menos de 25 anos de idade, relata o grupo de direitos humanos Coordenador Contra a Repressão Policial (CORREPI).
“O Estado é responsável. O Estado treina a polícia. Os policiais recebem honras, diploma, distintivo, arma para matar e licença para isso ser legal”, diz Alegre. “Nossos jovens precisam de oportunidades, não de polícia”. Luciano Arruga entrou no léxico do terror e da impunidade, onde as forças de segurança estigmatizam a sociedade com a incerteza do paradeiro da vítima ou do destino final. Contudo, um movimento crescente contra a repressão estatal quer quebrar os muros da impunidade.
Marie Trigona é escritora, produtora de rádio e produtora de documentários radicada na Argentina. Ela pode ser contatada por meio de seu blog www.mujereslibres.blospot.com
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