Já se passaram quase cinco meses desde que Jair Bolsonaro se tornou presidente no Brasil. As mudanças são difíceis de caracterizar de forma simples.
Por um lado, o espetáculo político ao qual os brasileiros se acostumaram tornou-se apenas mais surreal, à medida que o autoproclamado homem forte parece ter começado a se debater. Aproveitando uma onda de reações anti-establishment e anti-esquerda, Bolsonaro foi eleito por uma coligação improvável de conservadores religiosos, elites e setores populares insatisfeitos, com o apoio explícito do establishment militar. Hoje, o antigo capitão do exército e congressista opositor viu-se incapaz de cumprir as promessas de campanha devido ao impasse no Congresso e ao seu próprio gabinete heterogéneo, composto por negadores das alterações climáticas, ideólogos do mercado livre e teóricos da conspiração de ultra-direita.
Os sentimentos dos brasileiros em relação a ele e ao seu movimento também se mostraram mais inconstantes do que o previsto. À medida que o desemprego e a inflação aumentaram, pesquisas de opinião mostraram recentemente que apenas um terço dos brasileiros consideram seu governo “positivo”, o percentual mais baixo registrado para esta fase de presidência no período redemocratizado do país, começando em 1985. Protestos massivos contra as declarações anti-educação de Bolsonaro paralisaram grandes cidades em maio. 15, enquanto os jornais tradicionalmente pró-negócios Folha de S. Paulo e estádio começaram a publicar editoriais fortemente críticos. A sua relação com o establishment militar começou a desgastar-se devido aos seus pronunciamentos belicosos sobre a Venezuela. E assim como os tribunais do Brasil também interromperam sua propensão para decretos presidenciais (como aquele que arma professores de escolas públicas), evidências convincentes conectando seus filhos a milícias paramilitares e esquadrões da morte no Rio de Janeiro surgiram, levantando a possibilidade concreta de impeachment e prisão.
Tomando emprestado o manual global dos aspirantes a déspotas, Bolsonaro respondeu declarando um estado de guerra permanente com “os meios de comunicação tradicionais” e com os oponentes políticos, ao mesmo tempo que jogava a favor da sua base mais leal. Quando encurralado, ele chama a atenção para a política do bicho-papão – o establishment, o comunismo, o politicamente correto ou, em um caso, as disciplinas do sociologia e filosofia. Esta táctica é regularmente pontuada por uma série de gafes e absurdos no Twitter e em outros lugares, desde descrever O nazismo como uma consequência do esquerdismo, a querer acabar com o turismo gay no Brasil, a chamar para que os homens brasileiros tenham uma melhor higiene íntima, e seu inesquecível Batalha no Twitter com o prefeito de Nova York, Bill De Blasio, após seu constrangimento com o cancelamento de uma recepção planejada para ele no Museu Americano de História Natural. Houve também o decreto presidencial de abolição do horário de verão, seguido de uma anúncio do conselheiro que ele aboliria muito em breve “os plugues de três pinos, as urnas eletrônicas e a nova ortografia”.
Por outro lado, mesmo na ausência de sucessos legislativos e políticos, o gabinete do presidente conseguiu causar danos potencialmente irreversíveis, muitos dos quais passam despercebidos através de nomeações, decretos e fluxos de financiamento.
A desastrosa nomeação de Ricardo Salles—um negacionista pró-empresas das alterações climáticas—como ministro do meio ambiente é um exemplo disso. Isso motivou um reunião de todos os anteriores ministros do meio ambiente desde 1985 para divulgar uma declaração expressando alarme diante da forte reversão das políticas ambientais, bem como uma carta de mais de 600 cientistas europeus condenando o desmatamento e os ataques às terras indígenas na Amazônia. Na verdade, sob Salles, o governo retirou efectivamente o financiamento da protecção ambiental e fez vista grossa à actividade madeireira ilegal, à apropriação de terras e à desflorestação. O governo também retirou a autoridade da agência de assuntos indígenas sobre questões de terra, concedendo-a em vez disso ao ministério da agricultura. E Bolsonaro continuou a prometer mais desregulamentação ambiental, propondo recentemente transformar áreas florestais protegidas no estado do Rio de Janeiro na “Cancún do Brasil”. Da mesma forma, o novo ministro Abraham Weintraub mudou-se para desembolsar o público mais alto educação, ao mesmo tempo que destaca universidades e departamentos que têm sido palco de dissidências específicas; o seu antecessor, que durou menos de três meses no cargo, trabalhou para remover a “ideologia de género” e as “influências esquerdistas” do ensino primário. E o principal diplomata do Brasil, Eduardo Araújo, ameaçou destruir a reputação internacional do Brasil com o seu discurso ameaçador sobre a Venezuela e suas selfies adoradas com os neofascistas italianos.
Tomando emprestado o manual global dos pretensos déspotas, Bolsonaro respondeu declarando um estado de guerra permanente com “a mídia tradicional”.
Muito menos visíveis no exterior, mas não menos importantes para a democracia do Brasil, são os esforços do regime de Bolsonaro para desmantelar as instituições de democracia participativa do país, principalmente o seu sistema de conselhos. Desde a transição para a democracia em 1985, tem havido um sentimento amplamente partilhado – entre activistas, académicos e arquitectos da transição – de que a nação, sendo uma sociedade extremamente diversificada e profundamente desigual, precisava de algo além das instituições tradicionais de democracia representativa. A primeira constituição pós-ditadura de 1988, que foi parcialmente elaborada por propostas de novas formas de democracia direta, na verdade enfatiza esta ideia logo no seu primeiro parágrafo, que abre com as palavras: “Todo o poder emana do povo, que o exerce. através de representantes eleitos ou diretamente.”
Até muito recentemente, o Brasil era conhecido no cenário global como o “país da participação”. As instituições participativas brasileiras foram estudadas e emuladas desde a África do Sul até a Índia e os Estados Unidos. Desde a década de 1980, o Brasil tem sido palco de inúmeras formas de experimentação institucional com democracia direta – desde conselhos nacionais participativos e conferências de políticas populares até orçamentos participativos e planos diretores municipais participativos.
A principal entre estas formas de democracia direta é a estrutura brasileira de conselhos, que Bolsonaro tentou desmantelar através de uma série de decretos presidenciais em Abril e Maio que aboliriam 55 dos cerca de 90 conselhos. Com base na ideia de “democracia de conselho” social-democrata, os conselhos são órgãos permanentes para o diálogo entre o Estado e a sociedade e para o controlo social das instituições do Estado. Os dois principais partidos políticos no poder nas décadas de 1990 e 2000 – o Partido da Social Democracia Brasileira, de centro-direita, e o Partido dos Trabalhadores, de esquerda – investiram nestes conselhos, conferindo-lhes maior proeminência e estatuto ao longo de duas décadas.
É à própria ideia de democracia como um projeto de inclusão – de reconhecimento da diferença e da diversidade – que Bolsonaro declarou guerra.
Ao contrário dos seus homólogos escandinavos, os conselhos brasileiros não se limitam à representação setorial e tendem a ser muito mais plurais em termos de temas. Este tem sido o caso desde as administrações nacionais do Partido dos Trabalhadores, iniciadas em 2003. Os dois primeiros mandatos de Lula viram a criação de cerca de quarenta novos conselhos. Em meados de 2014, havia mais de noventa conselhos em funcionamento sobre questões de idosos, deficiências, cidades, juventude, cultura, ambiente, questões LGBT e SIDA, entre muitas outras. É difícil estimar quantas pessoas participaram em todas estas instâncias, uma vez que os governos subsequentes promoveram inúmeras audiências públicas, workshops, fóruns e conferências nacionais. Multiplicado pelas instâncias locais – quase todas as cidades têm pelo menos alguns conselhos em funcionamento em diversas áreas de prestação de serviços – um palpite conservador seria que milhões dos brasileiros participaram de algum fórum ou outro para fazer ouvir suas vozes.
Estes conselhos geralmente não têm poder de decisão vinculativo sobre vários ministérios; eles geralmente são considerados consultivos. Mas num país de apartheid socialmente dividido como o Brasil, o facto de altos funcionários de todos os ministérios terem de participar em conselhos e ouvir as ideias e exigências das populações desfavorecidas não pode ser ignorado. Dito de outra forma: apesar de todas as suas deficiências, a democracia brasileira conseguiu, no entanto, abrir as suas instituições a populações e interesses desfavorecidos que historicamente sempre foram excluídos dos processos de tomada de decisão, constituindo arenas institucionais nas quais este conflito poderia ser expresso politicamente. E os conselhos têm sido muitas vezes extremamente consequenciais: muitas das políticas inovadoras de inclusão social no Brasil nos últimos anos, desde o reconhecimento dos direitos da comunidade quilombola até o currículo progressista sobre a homofobia, surgiram lá.
Os decretos de Bolsonaro que abolem os conselhos foram contestados no Supremo Tribunal Federal como resultado de uma ação judicial do Partido dos Trabalhadores. E em resposta ao decreto e, de forma mais ampla, ao ataque aos direitos à participação e ao controle social, uma rede de pesquisadores, ativistas e membros de instituições participativas criou a Campanha #OBrasilPrecisadeConselho. É muito cedo para saber se essas mobilizações e estratégias jurídicas podem agir a tempo de evitar a destruição dos conselhos, como tantas outras coisas no Brasil.
É à própria ideia de democracia como um projeto de inclusão – de reconhecimento da diferença e da diversidade – que Bolsonaro declarou guerra. Isso já ficou claro durante as eleições, quando declarou que iria “acabar com todo o ativismo brasileiro”, assim como ficou claro com seu ataque aos conselhos. Acrescente-se a isto muitos outros desenvolvimentos – a posição do seu regime em apoio ao uso de armas pelos agricultores contra activistas sem terra; a rejeição da própria ideia de direitos das populações indígenas em seus territórios; o esforço para abolir a educação progressiva de género nas escolas; a sua obsessão com inimigos internos – e surge um quadro muito grave sobre o rumo que este projecto político está a tomar.
O Brasil continua a ser um país em crise e neste clima parece que tudo é possível. As mobilizações em defesa do seu regime ontem mostram tanto o seu desespero como uma preocupante polarização adicional dos seus apoiantes. Não sabemos quanto tempo Bolsonaro permanecerá como presidente, se a coligação de interesses que o levou ao poder o engolirá e se a resistência democrática será capaz de travar estes esforços autoritários durante tempo suficiente para encontrar uma alternativa.
Chamar os adversários políticos de inimigos mortais não faz com que a oposição desapareça; apenas justifica a sua eliminação.
Mas tememos que o seu regime prejudique a democracia do país de formas irreparáveis. Fechar canais para o reconhecimento da diferença e da diversidade de opiniões não eliminará o conflito, como é a perigosa fantasia autoritária de Bolsonaro. Chamar os adversários políticos de inimigos mortais não faz com que a oposição desapareça; apenas cria inimigos mortais e a justificativa para sua eliminação. O resultado mais provável da redução dos espaços democráticos é que os conflitos passarão a expressar-se de outras formas – incluindo, potencialmente, através da violência. O Brasil já vivia um período extremamente violento antes das eleições. No entanto, nos primeiros três meses de 2019, o Rio registou o maior número de assassinatos policiais alguma vez registado naquela cidade sob o governo do governador e aliado de Bolsonaro, Wilson Witzel, graças às suas directivas de “atirar para matar” à polícia militar.
Tememos que isso possa ser apenas o começo.
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