Portugal entrou em águas políticas perigosas. Pela primeira vez desde a criação da união monetária europeia, um Estado-Membro tomou a medida explícita de proibir os partidos eurocépticos de tomarem posse por motivos de interesse nacional.
Aníbal Cavaco Silva, o presidente constitucional de Portugal, recusou-se a nomear um governo de coligação de esquerda, apesar de ter garantido uma maioria absoluta no parlamento português e obtido um mandato para esmagar o regime de austeridade legado pela Troika UE-FMI.
Considerou demasiado arriscado deixar o Bloco de Esquerda ou os Comunistas aproximarem-se do poder, insistindo que os conservadores deveriam continuar como minoria, a fim de satisfazer Bruxelas e apaziguar os mercados financeiros estrangeiros.
A democracia deve ficar em segundo lugar em relação ao imperativo mais elevado das regras e da adesão ao euro.
“Em 40 anos de democracia, nenhum governo em Portugal alguma vez dependeu do apoio de forças anti-europeias, ou seja, de forças que fizeram campanha para revogar o Tratado de Lisboa, o Pacto Orçamental, o Pacto de Estabilidade e Crescimento, bem como para desmantelar a união monetária e tirar Portugal do euro, além de querer a dissolução da NATO”, disse Cavaco Silva.
“Este é o pior momento para uma mudança radical nos fundamentos da nossa democracia.
“Depois de termos levado a cabo um oneroso programa de assistência financeira, que implica pesados sacrifícios, é meu dever, dentro dos meus poderes constitucionais, fazer todo o possível para evitar que sejam enviados sinais falsos às instituições financeiras, aos investidores e aos mercados”, afirmou.
Cavaco Silva argumentou que a grande maioria do povo português não votou em partidos que querem o regresso ao escudo ou que defendem um confronto traumático com Bruxelas.
Isto é verdade, mas ele ignorou a outra mensagem central das eleições realizadas há três semanas: que também votaram pelo fim dos cortes salariais e pela austeridade da Troika. Os partidos combinados de esquerda obtiveram 50.7% dos votos. Liderados pelos Socialistas, controlam a Assembleia.
O primeiro-ministro conservador, Pedro Passos Coelho, veio primeiro e, portanto, leva o primeiro tiro na formação de um governo, mas a sua coligação de direita como um todo obteve apenas 38.5% dos votos. Perdeu 28 assentos.
O líder socialista, António Costa, reagiu com fúria, condenando a acção do presidente como um “grave erro” que ameaça envolver o país numa tempestade política.
“É inaceitável usurpar os poderes exclusivos do parlamento. Os socialistas não vão tirar lições do professor Cavaco Silva sobre a defesa da nossa democracia”, afirmou.
Costa prometeu prosseguir com os seus planos de formar uma coligação de tríplice esquerda e alertou que o governo de direita enfrentará um voto imediato de desconfiança.
Não poderá haver novas eleições até ao segundo semestre do próximo ano, segundo a Constituição de Portugal, arriscando quase um ano de paralisia que coloca o país em rota de colisão com Bruxelas e, em última análise, ameaça reacender a crise da dívida do país.
O mercado obrigacionista reagiu com calma aos acontecimentos em Lisboa, mas já não é um indicador sensível agora que o Banco Central Europeu está a liquidar a dívida portuguesa sob a flexibilização quantitativa.
Portugal já não está sob o regime da Troika e não enfrenta uma crise de financiamento imediata, mantendo reservas de caixa acima dos 8 mil milhões de euros. No entanto, o FMI afirma que o país permanece “altamente vulnerável” se houver algum choque ou se o país não conseguir concretizar as reformas, atualmente consideradas “estagnadas”.
A dívida pública é de 127% do PIB e a dívida total é de 370%, pior do que na Grécia. O passivo externo líquido é superior a 220% do PIB.
O FMI alertou que o “milagre das exportações” de Portugal continua a ter uma base estreita, a manchete ganha lisonjeada pelas reexportações com pouco valor agregado. “Não ocorreu um reequilíbrio duradouro da economia”, afirmou.
“O presidente criou uma crise constitucional”, disse Rui Tavares, um eurodeputado verde radical. “Ele está dizendo que nunca permitirá a formação de um governo contendo esquerdistas e comunistas. As pessoas estão surpresas com o que aconteceu.”
Tavares disse que o presidente invocou o espectro dos comunistas e do Bloco de Esquerda como um “espantalho” para impedir a tomada do poder pela esquerda, sabendo muito bem que os dois partidos concordaram em abandonar as suas exigências de saída do euro, uma retirada da OTAN e a nacionalização dos altos comandos da economia sob um acordo de compromisso para forjar a coligação.
O Presidente Cavaco Silva pode estar certo ao calcular que um governo socialista aliado aos comunistas precipitaria um grande conflito com os mandarins de austeridade da UE. O grande plano do senhor Costa para a reflação keynesiana – liderado pelos gastos na educação e na saúde – é totalmente incompatível com o Pacto Orçamental da UE.
Esta lei tola do tratado obriga Portugal a reduzir a sua dívida para 60% do PIB durante os próximos 20 anos, numa armadilha de austeridade permanente, e a fazê-lo tal como o resto do sul da Europa está a tentar fazer a mesma coisa, e tudo num contexto de poderosas forças deflacionárias em todo o mundo.
A estratégia de reduzir o enorme peso da dívida do país através de um aperto permanente do cinto é em grande parte autodestrutiva, uma vez que o efeito denominador da estagnação do PIB nominal agrava a dinâmica da dívida.
Também é inútil. Portugal exigirá uma anulação da dívida quando a próxima crise global se manifestar de forma intensa. Não há qualquer hipótese de a Alemanha concordar com a união fiscal da UEM a tempo de evitar isso.
A principal consequência de prolongar a agonia é a profunda histerese nos mercados de trabalho e os níveis cronicamente baixos de investimento que prejudicam o futuro.
Cavaco Silva está efectivamente a utilizar o seu cargo para impor uma agenda ideológica reaccionária, no interesse dos credores e do establishment da UEM, e revesti-la com uma notável ousadia como defesa da democracia.
Os Socialistas e Comunistas portugueses enterraram o machado das suas amargas divisões pela primeira vez desde a Revolução dos Cravos e a derrubada da ditadura de Salazar na década de 1970, mas estão a ser-lhes negada a prerrogativa parlamentar de formar um governo maioritário.
Esta é uma diligência perigosa. Os conservadores portugueses e os seus aliados mediáticos comportam-se como se a esquerda não tivesse o direito legítimo de tomar o poder e devesse ser controlada por todos os meios.
Estes reflexos são familiares – e assustadores – para qualquer pessoa familiarizada com a história ibérica do século XX, ou mesmo com a América Latina. É inteiramente expectável que isso esteja a ser feito em nome do euro.
O movimento Syriza da Grécia, o primeiro governo europeu de esquerda radical na Europa desde a Segunda Guerra Mundial, foi esmagado até à submissão por ousar confrontar a ideologia da zona euro. Agora a Esquerda Portuguesa depara-se com uma variante do mesmo moedor de carne.
Os socialistas da Europa enfrentam um dilema. Estão finalmente a acordar para a desagradável verdade de que a união monetária é um empreendimento autoritário da direita que escapou à sua rédea democrática, mas se agirem de qualquer forma com base nesta percepção correm o risco de serem impedidos de tomar o poder.
Bruxelas criou realmente um monstro.
ZNetwork é financiado exclusivamente pela generosidade de seus leitores.
OFERTAR