Relacionar os desastres humanos com talento e coragem, dar voz a quem está sempre excluído, opor-se e denunciar a injustiça social com textos jornalísticos e literários, são ferramentas que uma diáspora de mulheres no mundo colocou à disposição do ato revolucionário de ler . Mulheres que no século XX e nestes poucos anos do século XXI nos revelam o que Elías Caneti chama de escritoras do nosso tempo, acompanhando o sistema, cronistas indispensáveis.
Durante a semana passada eles deram testemunho, recordando-nos isto que digo, com uma força que nos dá esperança num momento difícil da história humana. Uma dessas mulheres, viva, barulhenta em tom discreto, com seu sorriso inocente de menina, leitora incansável dos livros e da vida e hoje ganhadora de diversos prêmios. O outro, desconhecido no nosso meio, que nos disse adeus aos noventa e quatro anos sem nunca ter sido derrotado. Ela lutou incansavelmente com suas palavras.
Estou falando das duas pessoas que apareceram no noticiário na semana passada. Elenita Poniatowska, vencedora do Prémio Cervantes 2013, qualificando-se simplesmente pela sua extraordinária capacidade de nos recordar, com excelente narrativa, histórias que não podem ser esquecidas, como a de Jesusa Palancares em Hasta No Verte, Jesús Mío ou El Tren que pasa Primero, onde o centro das atenções é ocupado pelos ferroviários no contexto do México e do seu milagre económico, baseado no trabalho e na exploração dos seus filhos e filhas.
A outra, nada menos que Doris Lessing, Prémio Nobel da Literatura em 2007, autora de um livro fundamental sobre a injustiça humana, a discriminação contra as mulheres e os acentos de uma visão livre de dogmatismo: The Golden Notebook (1962), a sua longa narrativa que fez dela, até o fim da vida, uma rebelde convicta. Lessing surpreendeu-nos com a sua literatura, com a sua inegável inteligência; seus romances retratam a desgraça de nossos tempos. Ela era a inimiga jurada de todo dogmatismo e fundamentalismo.
Uma é uma princesa polaca, a outra uma inglesa nascida no Irão e depois na Pérsia. Um com raízes jornalísticas que soube tomar nota da história e romper as fronteiras do esquecimento, o outro, segundo a escritora Marta Sanz, lançou luz sobre as lutas de classe, de gênero e de cultura, em busca de pontos comuns. Ambos na primeira página do El País, reconhecidos e atuantes.
Entre os comentaristas literários do México, não houve uma palavra sobre Doris Lessing. Doris nasceu na Pérsia em 1919 e viveu na Rodésia. Ela morreu em 17 de novembro. Seu livro emblemático, O Caderno Dourado, fez dela uma figura universal, fonte de uma produção literária engajada sem medo de rejeição, tenazmente oposta ao apartheid e à segregação racial na Rodésia, uma mulher que até seu último suspiro, não poderia ser silenciado. Ela tem uma narrativa comovente, desconhecida em espanhol, intitulada “Por que uma criança negra de Zimbabu roubou um manual de física de alto nível”. Autora da reportagem “Risos Africanos”, foi perseguida, proibida.
Década de 1970: Elenita no México com Jesusa Palancares nos apresenta essas mulheres do povo, suas tarefas diárias e sua busca, montando uma crônica de seu tempo, inclusiva e persistente, com aquelas orelhas magníficas que marcam o jornalista trabalhador, começa a comove-nos profundamente. Entretanto, Doris é amplamente lida pelas novas feministas, pela sua capacidade de olhar e narrar, com linguagem revolucionária, as diferenças entre homens e mulheres, no meio das injustiças sociais do sistema capitalista com a sua exclusão sistemática.
Doris conseguiu, em seus romances, traçar o horizonte da solidariedade entre as mulheres. Com Simone de Beauvoir narrou e fez reflexões claras sobre a repugnância que sentimos diante dos estragos da idade. No final da vida deixou grávidas reflexões sobre o drama da desigualdade, procurando urgentemente uma sociedade onde ninguém sentisse a culpa do carrasco nem a fraqueza despótica da vítima, como Marta Sanz escreveu sobre ela no El País de 18 de novembro. .
Duas enormes narradoras, cronistas, jornalistas, romancistas, escritoras enraizadas no seu tempo e que espelham este tempo com a sua obra, esta necessidade necessária, urgente, fundamental de leitura, de reflexão, de assumir a palavra que sem luta sexista foi dada a milhões das pessoas para que não possam esquecer a auréola básica que é a vida, sem deixar de olhar para o outro, para todos os outros, em cada trecho da história.
Sobre Elena, a escritora Rosa Beltrán afirma que sua obra se tornou uma referência indispensável para a cultura no México, passando da história oral ao texto, mais com fatos do que com palavras nascidas de sua obra muito antes de chegarem à academia. Não podemos deixar de dizer em voz alta o que ninguém aqui no México se atreveu a dizer: Elena documentou o terrível abuso de meninas violadas e condenadas pelo terramoto de 1985.
Há mais, como escreveu Juan Villoro. Elena aprendeu a ouvir em seu jornalismo. Há algumas semanas, como sempre, eu a vi fazendo anotações em um caderninho, respirando fundo o que a inspirava, esboçando o que via. Ela sempre foi uma repórter incansável. Conheci-a num acto de homenagem a Laura Bonaparte após a sua morte. E de facto Elenita é uma mestre na empatia com os seus informantes. Os fatos vêm antes dos adjetivos, o que é necessário nesse tipo de jornalismo, nessa escrita, nessa narrativa, do caderno ao romance, à medida que a realidade ganha corpo.
Quanto a Doris, deixou-nos, entre muitos textos, uma obra emocionante e digna que Seis Barral publicou (em espanhol) em 1962: La Costumbre de Amar (O hábito de amar, publicada em 1957 em inglês), uma coletânea de dezessete contos que recriam a vida comum, com uma veracidade nua e crua, o que somos como homens e mulheres; na passagem do tempo, nas pequenas misérias, como comenta José María Guelbenzu neste texto.
Dois exemplos de narrativas enraizadas no nosso tempo que, tal como a obra de Elena Garro e Rosario Castellanos, vieram dar força às nossas almas, nestes tempos em que a vulgaridade das lutas pelo poder, as mentiras e as simulações podem nos estrangular se não ampliamos a nossa visão, se não conseguirmos aceitar a nossa verdadeira humanidade, algo que pode nos salvar nestes tempos insípidos e desesperadores.
Eu fico com eles. Eu vou lê-los.
(Traduzido para Alai por Jordan Bishop)
– Sara Lovera é uma jornalista mexicana.
Palavra de Antígona.
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