A elevada visibilidade pública dos tribunais ao longo das últimas décadas foi em grande parte causada por processos judiciais envolvendo membros das elites políticas e económicas. O principal divisor de águas foi a série de processos criminais conhecidos como Operação Mãos Limpas (Mani Pulite), que atingiu praticamente toda a classe política italiana e grande parte da sua elite económica. Iniciada em Milão, em Abril de 1992, a operação incluiu a investigação e detenção de ministros, líderes partidários, membros do parlamento (com cerca de um terço de todos os membros a ser investigados a certa altura), empresários, funcionários públicos, jornalistas e membros do grupo secreto. serviços, acusados de crimes como suborno, corrupção, abuso de poder, fraude, falência fraudulenta, contabilidade falsa e financiamento político ilegal. Dois anos depois, 633 pessoas foram presas em Nápoles, 623 em Milão e 444 em Roma. Por ter atingido toda a classe política sob cuja liderança o país foi governado no passado recente, a investigação Mãos Limpas abalou os alicerces do sistema político italiano e levou ao surgimento, anos mais tarde, do “fenómeno de Berlusconi”. ”. Dadas estas e outras razões, os tribunais de muitos países ganharam muita notoriedade pública desde então. A mais recente, e talvez a mais dramática de todas, que eu saiba, é a Operação Lava Jato no Brasil (“Lava Jato” – ou melhor, e literalmente, “lavagem rápida”).
Por que a Operação Lava Jato ultrapassou em muito os limites das controvérsias que habitualmente surgem na sequência de qualquer caso proeminente de ativismo judicial? Permitam-me salientar que a semelhança com a investigação Mãos Limpas em Itália tem sido frequentemente invocada para justificar a exibição pública e a agitação pública causada por este activismo judicial. Mas as semelhanças são mais aparentes do que reais e há de facto duas diferenças muito definidas entre as duas investigações. Por um lado, os magistrados italianos sempre mantiveram um respeito escrupuloso pelo processo penal e, quando muito, nada fizeram senão aplicar regras que tinham sido estrategicamente ignoradas por um sistema judicial que não era apenas conformista, mas também cúmplice dos privilégios do governante. elites políticas na política italiana do pós-guerra. Por outro lado, procuraram aplicar o mesmo zelo invariável na investigação dos crimes cometidos pelos líderes dos vários partidos políticos governantes. Assumiram uma posição politicamente neutra precisamente para defender o sistema judicial dos ataques a que certamente seria sujeito por parte dos alvos das suas investigações e processos. Esta é a própria antítese do triste espetáculo oferecido atualmente ao mundo por um setor do sistema judiciário brasileiro. O impacto causado pelo ativismo dos magistrados italianos passou a ser chamado de República dos Juízes. No caso do ativismo do setor associado à Lava Jato, talvez fosse mais correto falar de uma República das Bananas judicial. Por que? Por causa do impulso externo que claramente está por trás deste exemplo específico de ativismo judicial brasileiro, mas que esteve em grande parte ausente no caso italiano. Esse impulso é o que dita a gritante selectividade de tal zelo investigativo e acusatório. Pois embora envolva lideranças de diversos partidos, o fato é que a Operação Lava Jato – e seus cúmplices midiáticos – tem se mostrado majoritariamente inclinada a implicar dirigentes do PT (Partido dos Trabalhadores), com o já inequívoco propósito de provocar o assassinato político da presidente Dilma Rousseff e do ex-presidente Lula da Silva.
Tendo em conta a importância deste impulso externo e o carácter selectivo da acção judicial que tende a gerar, a Operação Lava Jato partilha mais semelhanças com outra investigação judicial, a que teve lugar na República de Weimar após o fracasso da revolução alemã de 1918. A partir desse ano, e num contexto de violência política originada tanto na extrema esquerda como na extrema direita, os tribunais alemães mostraram uma chocante demonstração de duplicidade de critérios, punindo com severidade o tipo de violência cometida pela extrema esquerda e mostrando grande clemência face à violência da extrema direita – a mesma direita que em apenas alguns anos colocaria Hitler no poder.
No Brasil, o impulso externo vem na forma das elites económicas e das forças políticas ao seu serviço, que não aceitaram o facto de terem perdido as eleições de 2014 e, no meio da actual crise global de acumulação de capital, sentiram seriamente ameaçados pela perspectiva de mais quatro anos sem qualquer controlo sobre a parte dos recursos do país dependente do governo, sobre a qual sempre descansou o seu poder. O auge dessa ameaça foi atingido quando Lula da Silva – visto como o melhor presidente brasileiro desde 1988, com uma taxa de aprovação de 80% no final do seu mandato – começou a ser considerado um potencial candidato presidencial para 2018. Naquele momento, a democracia brasileira deixou de ser funcional para este bloco político conservador e seguiu-se a desestabilização política. O sinal mais óbvio do impulso antidemocrático foi o movimento para o impeachment da Presidente Dilma Rousseff poucos meses após a sua tomada de posse – um facto que foi, se não totalmente inédito, pelo menos altamente incomum na história democrática das últimas três décadas. . Percebendo que a sua luta pelo poder estava bloqueada pelo governo da maioria da democracia (“tirania da maioria”), procuraram fazer uso daquele órgão soberano que é o menos dependente das regras da democracia e especificamente concebido para proteger as minorias, ou seja, os tribunais. A Operação Lava Jato – uma investigação altamente digna – foi a ferramenta a que recorreram. Apoiado pela cultura jurídica conservadora que é amplamente predominante no sistema judicial do Brasil, nas suas Faculdades de Direito e no país em geral, bem como por um arsenal completo de armas mediáticas de alta potência e alta precisão, o bloco conservador fez tudo o que pôde para distorcer a Operação Lava Jato. Desviou-a assim dos seus objectivos judiciais, que em si eram cruciais para a consolidação da democracia, e transformou-a numa operação de extermínio político. A distorção consistiu em manter a fachada institucional da Operação Lava Jato e, ao mesmo tempo, alterar profundamente a sua estrutura funcional subjacente, o que foi conseguido garantindo que o político tivesse precedência sobre o judicial. Enquanto a lógica judicial se baseia no ajuste entre meios e fins, conforme ditado pelas regras processuais e pelas garantias constitucionais, a lógica política, se impulsionada pela pulsão antidemocrática, subordina os fins aos meios e define a sua própria eficácia de acordo com o grau de essa subordinação.
Neste processo, as intenções do bloco conservador tiveram três grandes factores a seu favor. A primeira foi a dramática mudança de caráter sofrida pelo PT como partido democrático de esquerda. Uma vez no poder, o PT decidiu governar de acordo com o “estilo antigo” (ou seja, o estilo oligárquico) para atingir os seus novos e inovadores objectivos. Ignorando a lição de Weimar, acreditava que quaisquer “irregularidades” que pudesse cometer seriam recebidas com a mesma leniência tradicionalmente reservada às irregularidades cometidas pelas elites e pelas classes políticas conservadoras que governaram o país desde a sua independência. Ignorando a lição marxista que afirmava ter absorvido, não conseguiu ver que o capital não permitirá que ninguém o governe, a não ser o seu próprio, e nunca é grato a quaisquer estranhos que lhe façam favores. Aproveitando um contexto internacional em que, como consequência do desenvolvimento da China, o valor dos produtos primários teve um aumento excepcional, o governo petista incentivou os ricos a enriquecerem. Isto foi visto como uma pré-condição para angariar os recursos necessários para levar a cabo as medidas extraordinárias de redistribuição social que tornaram o Brasil um país substancialmente menos injusto, graças às quais mais de 45 milhões de brasileiros foram libertados do jugo da pobreza endémica. Quando o contexto internacional já não fosse favorável, nada menos que um tipo de política de “novo estilo” seria suficiente para garantir a redistribuição social. Por outras palavras, era necessária uma nova política que, entre outras coisas, pudesse utilizar a reforma política para acabar com a relação promíscua entre o poder político e económico, a reforma fiscal para tributar os ricos como forma de financiar a redistribuição social no período pós-boom das matérias-primas. e, finalmente, a reforma dos meios de comunicação social, não para impor censura, mas antes para garantir a diversidade na opinião publicada. No entanto, como se viu, era tarde demais para todas as coisas que deveriam ter sido feitas no seu próprio tempo e não num contexto de crise.
O segundo fator está ligado ao primeiro. É a crise económica global e o aperto de ferro em que está preso por aquilo que a causa – o capital financeiro e a sua autodestruição implacável, que também destrói a riqueza sob o pretexto de criar riqueza e transforma o dinheiro de um meio de troca num meio de troca. principal mercadoria do negócio especulativo. A hipertrofia dos mercados financeiros é um impedimento ao crescimento económico. Em vez disso, apela a políticas de austeridade sob as quais os pobres sejam investidos do dever de ajudar os ricos a permanecerem ricos e, se possível, a ficarem mais ricos. Nestas condições, as frágeis classes médias criadas no período anterior encontram-se à beira de uma pobreza repentina. Com as suas mentes envenenadas pelos meios de comunicação conservadores, eles são rápidos em responsabilizar os próprios governos que os transformaram naquilo que agora são responsáveis pelo que lhes poderá acontecer no futuro. Isso é tanto mais provável que acontecesse porque o bilhete de consumo, e não o bilhete de cidadania, era a passagem que pagavam para viajar da senzala até os pátios externos do Solar.
A primeira e mais urgente tarefa é salvar o Judiciário brasileiro do abismo em que está afundando. Para conseguir isso, o seu sector saudável – certamente a maioria do sistema judicial – deve assumir a tarefa de restabelecer a ordem, a serenidade e a contenção entre os seus membros. O princípio orientador é bastante simples de afirmar: a independência dos tribunais no âmbito do Estado de direito destina-se a permitir-lhes cumprir a sua quota-parte de responsabilidade na consolidação da ordem democrática e da coexistência democrática. Para que isso aconteça, estão impedidos de colocar a sua própria independência ao serviço de quaisquer interesses políticos empresariais ou sectoriais, por mais poderosos que sejam. Embora fácil de afirmar, o princípio é muito difícil de aplicar. A principal responsabilidade pela sua aplicação, neste momento, cabe a dois órgãos diferentes. O STF (Supremo Tribunal Federal) deve assumir o seu papel de garantidor máximo da ordem jurídica e acabar com a anarquia jurídica que se espalha. O STF enfrentará muitas decisões importantes num futuro próximo, que devem ser obedecidas por todos, independentemente do que decida. Actualmente, o Supremo Tribunal é a única instituição capaz de travar a descida para o estado de emergência. Quanto ao CNJ (Conselho Nacional de Justiça), que detém o poder disciplinar dos magistrados, deveria iniciar imediatamente um processo disciplinar em razão de reiteradas prevaricações e abusos processuais, não apenas contra o juiz Sérgio Moro, que dirige a investigação de forma flagrantemente tendenciosa. maneira, mas contra todos aqueles que se comportaram de maneira semelhante. Se não forem tomadas medidas disciplinares exemplares, o judiciário brasileiro corre o risco de desperdiçar a influência institucional que conquistou nas últimas décadas e que, como sabemos, nem sequer foi usada para beneficiar forças ou políticas de esquerda. Foi conquistado simplesmente garantindo consistência sustentada e o equilíbrio certo entre meios e fins.
Se a primeira tarefa for levada a cabo com sucesso, a separação de poderes será preservada e o processo político democrático retomará o seu curso. O gabinete da presidente Dilma Rousseff decidiu incluir Lula da Silva entre seus ministros. É seu direito fazê-lo e nenhuma instituição, muito menos o poder judicial, tem o poder de o impedir. Não se trata de fugir à justiça por parte de um político que nunca recuou numa luta, pois acabará por ser julgado (se for o caso) por essa entidade – o Supremo Tribunal – que em última análise o julgaria. de qualquer forma. Do ponto de vista jurídico, seria uma aberração aplicar aqui o princípio do “tribunal natural”. É claro que podemos discordar da decisão política em questão. Lula da Silva e Dilma Rousseff sabem que estão fazendo um movimento arriscado, ainda mais arriscado caso a entrada de Lula no gabinete não se traduza em uma mudança de rumo para arrancar das mãos das forças conservadoras o controle sobre a extensão e o ritmo da a erosão que causaram no governo. Na verdade, apenas eleições presidenciais antecipadas poderão trazer de volta a normalidade. Se a decisão Lula-Dilma correr mal, as suas carreiras terão chegado ao fim, e será um fim muito indigno, especialmente no caso de um homem que devolveu a dignidade a tantos milhões de brasileiros. Além disso, o PT levará muitos anos para restaurar a sua credibilidade junto à maioria do povo brasileiro, sem falar que terá que passar por um processo de mudança radical. Se tudo correr bem, o novo governo terá que efetuar uma mudança de política, começando imediatamente, para não decepcionar a confiança dos milhões de brasileiros que saem às ruas para protestar contra os golpistas. Se o governo brasileiro deseja encontrar ajuda por parte de tantos manifestantes, terá que ajudá-los a encontrar motivos para ajudar. O que quer dizer que, seja como oposição ou como governo, o PT será forçado a reinventar-se. E sabemos que isso será muito mais difícil de fazer quando estivermos no governo.
A terceira tarefa é ainda mais complexa, porque num futuro próximo a democracia brasileira terá de ser defendida tanto nas instituições do país como nas ruas. E uma vez que a elaboração de políticas não é conduzida nas ruas, será dada a devida prioridade às instituições, mesmo nestes tempos de impulso autoritário e de emergência antidemocrática. As tentativas de desestabilização continuarão e tornar-se-ão mais agressivas à medida que a fraqueza do governo e das forças que o apoiam se tornarem mais visíveis. As organizações e movimentos populares, bem como as manifestações pacíficas, serão infiltrados por provocadores. É necessária uma vigilância constante, uma vez que este tipo de provocação está actualmente a ser utilizado em muitos contextos para criminalizar o protesto social, reforçar a repressão estatal e declarar estados de emergência, embora por trás de uma fachada de normalidade democrática. Como argumentou Tarso Genro, o estado de emergência está de alguma forma em vigor, razão pela qual a bandeira “Não haverá golpe” deve ser entendida como uma denúncia do golpe político-judicial que já está em curso. Um novo tipo de golpe, que precisa ser neutralizado.
Finalmente, a democracia brasileira pode beneficiar-se da experiência recente de alguns países vizinhos. A forma como as políticas progressistas foram implementadas no continente tornou impossível deslocar para a esquerda o centro político a partir do qual se definem as posições da esquerda e da direita. É por isso que, quando os governos progressistas são derrotados, a direita chega ao poder possuidora de uma virulência sem precedentes e decidida a destruir, num piscar de olhos, tudo o que foi construído em favor das classes populares no período anterior. Depois surge a direita no seu espírito vingativo, para cortar pela raiz a possibilidade de um governo progressista ressurgir no futuro. Para isso, conta com a cumplicidade do capital financeiro internacional para incutir nas classes populares e nos excluídos a noção de que a austeridade não é uma política que possa ser desafiada, mas sim um destino ao qual devem resignar-se. O governo de Macri, na Argentina, é um exemplo disso.
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